A luz do final da tarde entrava pela janela da sala, tingindo o ambiente em tons alaranjados. Ela estava sentada no chão, encostada no sofá, com o diário aberto sobre os joelhos. Seus dedos seguravam a caneta com leveza, como se estivesse desenhando no ar. Ela escrevia com um sorriso pequeno e distraído, perdida no mundo das palavras.
Ele observava do outro lado da sala, sentado na poltrona, o olhar fixo nela. Por um momento, uma pontada de ternura atravessou o desconforto que ele sentia. Ela parecia tão em paz.
— O que você tanto escreve aí? — Ele perguntou, quebrando o silêncio. Sua voz tinha um tom casual, mas por dentro, ele já sabia que a resposta o incomodaria.
Ela levantou os olhos, e ele viu o brilho de sempre neles — aquele brilho que ela só tinha quando estava escrevendo.
— Histórias.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Mais uma?
Ela riu suavemente e voltou a olhar o diário, passando os dedos por uma das páginas como se acariciasse algo precioso.
— Sempre há mais uma. — Sua voz era baixa, quase um sussurro. — Aqui, as histórias nunca morrem.
Ele franziu o cenho. A frase o incomodou mais do que deveria. Ela parecia falar do diário como se ele fosse um lugar.
— Por que você sempre diz isso? — Sua voz soou mais dura do que ele pretendia. — São só páginas. Papel. Não é real.
Ela o encarou, surpresa pela resposta. Por um segundo, ele viu algo em seus olhos — não mágoa, mas uma distância.
— Você realmente acha isso?
— Claro. Você passa mais tempo escrevendo essas histórias do que vivendo aqui comigo.
Ela fechou o diário com delicadeza, mas o som ecoou como um tiro na sala silenciosa.
— Porque aqui eu sou livre.
— E aqui fora não?
Ela não respondeu. Seu olhar se perdeu pela janela, onde o céu começava a se tingir de roxo. Ela voltou a sorrir, mas era um sorriso triste, como se já soubesse o final daquela conversa.
— Nem sempre, — murmurou por fim.
Ele desviou o olhar, sentindo o desconforto crescer dentro dele como uma raiz venenosa. Por que ele não podia entender aquilo? Por que ela precisava tanto daquele caderno, como se fosse mais importante do que ele?
— Deixa eu ler uma história, então. — Ele pediu, forçando um tom leve.
Ela hesitou. Era a primeira vez que ele demonstrava interesse. Por um segundo, ele quase pôde ver a felicidade surgir nos olhos dela.
— Está bem. Só um trecho.
Ela abriu o diário novamente, folheando até encontrar a página certa. Sua voz era delicada enquanto lia:
“Havia uma vez uma mulher que guardava pedaços do coração em lugares onde ninguém podia tocar. Ela os costurava em palavras, nas folhas de um diário que ninguém entendia. E talvez, por isso, ela nunca seria verdadeiramente sozinha — porque as histórias nunca morrem. Mesmo quando ela desaparecesse, elas ainda viveriam…”
Ele não esperou que ela terminasse.
— Isso é sobre você? — A pergunta veio como um soco, mais brusca do que ele pretendia.
Ela olhou para ele, e o brilho nos olhos dela se apagou.
— Talvez.
— Você vive demais nesse caderno.
Ela fechou o diário devagar, sem tirar os olhos dele. O silêncio que se seguiu foi pesado. Por um momento, ele pensou em pedir desculpas, mas a irritação venceu.
— Às vezes, parece que você prefere ele a mim.
— Às vezes, prefiro mesmo.
O ar ficou gelado. Ela se levantou sem dizer mais nada, o diário apertado contra o peito, como se fosse uma armadura. Ele ficou sozinho na sala, encarando o espaço onde ela estivera momentos antes.
Por que aquilo o incomodava tanto? Por que ele queria destruir aquele diário, como se, ao destruí-lo, pudesse finalmente tocá-la?
Ele não sabia, mas naquele instante, uma rachadura invisível abriu-se entre os dois — uma rachadura que, em breve, se tornaria um abismo.