Quando Clara atravessou os portões da Lancellotti Futures, ela sentiu algo que há meses não experimentava: ar livre. O jardim à sua frente era uma paisagem cuidadosamente esculpida, com grama perfeitamente aparada e fileiras de arbustos simétricos. Flores vibrantes em tons de vermelho e amarelo contrastavam com a frieza estéril que ela deixava para trás.
Estava chuviscando, e as gotas finas tocavam sua pele como pequenos lembretes de que ela ainda estava viva. Parada no meio do jardim, Clara permitiu-se respirar profundamente. O cheiro da terra molhada invadiu seus pulmões, e por um breve momento, ela se permitiu sentir — sentir o peso do que havia perdido e a possibilidade do que poderia vir a ser.
Trecho do diário de Clara Cardoso:
“Quando meus pés tocaram o jardim fora da Lancellotti Futures, senti um misto de alívio e tristeza. A chuva fina caía sobre mim, e, por um instante, permiti-me parar. O chão úmido sob meus pés era uma sensação que eu não experimentava há meses, algo tão simples, mas tão poderoso. Olhei para o céu nublado e deixei as gotas escorrerem pelo meu rosto. Sabia que precisava continuar, que minha liberdade ainda era frágil, mas aquele momento… aquele momento era meu.”
Após atravessar ruas desertas e esquinas mal iluminadas, Clara encontrou refúgio em uma casa abandonada nos limites da cidade. Era uma estrutura decadente, cercada por galpões enferrujados e vielas cobertas de mato. As paredes de tijolos expostos revelavam anos de abandono, e o telhado parcialmente destruído deixava o vento frio entrar livremente. No entanto, para Clara, aquele espaço oferecia algo que ela não tinha há muito tempo: controle.
Ela improvisou uma cama com pedaços de tecido abandonados e se posicionou perto de uma janela, de onde podia observar as luzes distantes da cidade. Ali, a liberdade parecia surreal, quase inalcançável. Seu corpo, agora fortalecido pelos experimentos, reagia a tudo de maneira intensificada. O rangido do piso, o aroma da terra molhada, o som do vento assoviando pelas frestas — tudo parecia ter um significado maior, quase avassalador.
Trecho do diário de Clara Cardoso:
“Eu queria me sentir livre, mas tudo o que sinto é o peso do que aconteceu. Cada cicatriz em meu corpo, cada memória daqueles corredores, é como um lembrete constante de que eu não sou mais a mesma. Mas talvez… talvez isso seja uma chance de recomeçar. De ser algo novo.”
Nos dias seguintes, Clara começou a adaptar-se à sua nova realidade. Suas habilidades aprimoradas tornaram-se ferramentas valiosas para sua sobrevivência. Com sentidos aguçados, ela conseguia encontrar roupas em armazéns abandonados e invadir pequenos mercados durante a noite, movendo-se com a precisão de um predador invisível. Cada som e textura capturada por seus sentidos amplificados parecia gritar detalhes que antes passariam despercebidos.
Clara também transformou a casa abandonada em um esconderijo funcional. Usando materiais encontrados em galpões próximos, cobriu as janelas quebradas com lonas e remendou partes do telhado com pedaços de madeira e metal. Organizou suas poucas posses e criou um espaço para guardar os cadernos e documentos que considerava essenciais.
Cada pequena conquista era um passo rumo a uma nova vida, mas também um lembrete de tudo o que havia perdido. A cada noite, Clara observava a cidade ao longe, tentando dar sentido ao mundo que agora enxergava com outros olhos.
Uma noite, enquanto folheava um dos cadernos que trouxera consigo, Clara encontrou algo que chamou sua atenção: uma anotação incompleta sobre uma reação celular anômala. Ela percebeu que seu corpo havia se adaptado de formas que nem Victor compreendia completamente. As capacidades que demonstrava iam além do que ele havia planejado, algo que ele provavelmente nem previra.
Trecho do relatório encontrado por Clara:
“Regeneração anômala observada em sujeito 12A. Padrões comportamentais e físicos sugerem mudanças além do escopo projetado. Dados insuficientes para análise conclusiva.”
Aquela descoberta acendeu uma faísca de esperança dentro dela. Talvez, no meio do caos, ela tivesse se tornado algo mais — algo que pudesse fazer diferença.
Clara sabia que não podia simplesmente fugir para sempre. Precisava se preparar para o momento em que inevitavelmente enfrentaria Victor. Transformou parte do refúgio em um espaço de treinamento improvisado. Usando pedaços de madeira e metal encontrados nos galpões próximos, construiu barras para testar sua força e resistência. Criou um circuito rudimentar para desafiar seus reflexos, empilhando caixas e objetos que exigiam movimentos rápidos e precisos.
A cada sessão, Clara sentia a extensão de suas habilidades de forma mais clara. Seus sentidos aguçados permitiam que ela calculasse distâncias com precisão e antecipasse movimentos que antes seriam imperceptíveis. Mas não era apenas o físico que ela precisava entender; Clara também começou a desafiar sua mente. Resgatou livros antigos de bibliotecas abandonadas, muitos dos quais exigiam concentração e raciocínio lógico. Entre eles, encontrou textos científicos que a ajudavam a contextualizar as anotações do laboratório de Victor.
Trecho do diário de Clara Cardoso:
“Cada pensamento é como um jogo de xadrez. Vejo as peças, os movimentos, os perigos. Victor me tornou algo que ele nunca previu: alguém que pode vê-lo antes mesmo de ele agir. Mas esse presente veio com um preço. A cada passo, sinto que estou me afastando do que fui.”
Clara sabia que sua jornada estava apenas começando. Enquanto explorava suas novas habilidades e buscava respostas sobre o que havia se tornado, ela também sentia o peso da solidão. Lembranças de Vanessa e Marcos eram um lembrete de que ela não estava completamente sozinha, mas também de que não podia colocá-los em risco novamente.
Foi então que Clara tomou uma decisão. Se Victor havia transformado sua vida em um pesadelo, ela faria o oposto. Usaria o que aprendeu, o que se tornou, para desfazer o dano que ele havia causado. Com o passar dos dias, Clara começou a criar um plano para expor o legado de Victor e impedir que mais vidas fossem destruídas.
Trecho do diário de Clara Cardoso:
“Se eu quero realmente mudar algo, não posso mais me permitir hesitar. Victor pensa que o controle é absoluto, mas ele esqueceu de uma variável: eu.”
Clara estava pronta para lutar. Não apenas por si mesma, mas por todos aqueles que haviam sido silenciados.