I
Embora o destino parecesse jogar contra eles, o reencontro entre Clara, Vanessa e Marcos não foi fruto do acaso. Antes de tudo, houve planejamento. Clara havia conseguido localizar Marcos através de uma rede de contatos antigos, utilizando memórias fragmentadas de segurança que ambos haviam compartilhado na Lancellotti Futures. Quando entrou em contato com ele, foi recebida com uma mistura de alívio e incredulidade. Marcos, sempre pragmático, hesitou — não por desconfiar de Clara, mas por temer as consequências. No entanto, a voz dela trouxe algo que ele não sentia havia meses: propósito.
Vanessa, por sua vez, foi a última a entrar em contato. Ela passou dias ponderando se deveria se aproximar dos dois, sabendo que sua chegada não seria bem-recebida. Quando finalmente decidiu agir, usou o mesmo circuito de comunicação improvisado que Clara havia estabelecido para se reconectar. Ao ouvir a voz de Vanessa, tanto Clara quanto Marcos ficaram em silêncio. A desconfiança pairava como uma nuvem carregada sobre a conversa, mas algo na urgência de Vanessa os convenceu a aceitá-la no encontro, mesmo que com reservas.
Clara, Vanessa e Marcos se encontraram em uma casa abandonada nos limites da cidade, um lugar escolhido por sua discrição e aparência esquecida. Do lado de fora, o cenário era melancólico: o jardim há muito negligenciado estava tomado por ervas daninhas e arbustos retorcidos, enquanto um poste de luz enferrujado projetava uma sombra tremeluzente na fachada desgastada. A porta da frente, feita de madeira maciça, tinha lascas que expunham um tom mais claro debaixo da pintura descascada, como cicatrizes de um tempo melhor.
Clara chegou primeiro, atravessando o pequeno portão que rangeu ao ser empurrado. O ar era denso, com um leve aroma de mofo misturado ao cheiro metálico de ferrugem. Ao entrar, foi recebida pelo som do vento que assobiava pelas frestas das janelas quebradas. Movendo-se com cautela pelos cômodos empoeirados, ela notou as paredes cobertas de musgo e tinta descascada, que pareciam sussurrar histórias antigas. A luz filtrava-se por frestas no telhado, criando sombras inquietas no piso de madeira que rangia sob seus passos.
O interior da casa tinha um silêncio opressor, interrompido apenas pelo ocasional estalo da madeira envelhecida. Restos de móveis esquecidos estavam espalhados: uma cadeira de balanço sem uma perna, um armário tombado no canto, e uma mesa coberta de poeira que parecia esperar por uma nova função. Clara inspecionou cada canto com os olhos afiados que haviam se tornado tão familiares para ela, sentindo o peso das escolhas que fizera e do futuro que precisava construir. Embora sua postura fosse confiante, o ar pesado da casa parecia ecoar a pressão que a acompanhava, como se o próprio espaço reconhecesse a gravidade do momento.
Vanessa chegou à casa alguns minutos depois de Clara, movendo-se com cuidado pelo jardim. O portão rangeu sob seu toque hesitante, e ela parou por um momento para observar a fachada da casa, como se ponderando se deveria continuar. Respirou fundo, ajustou os ombros e seguiu em frente, o coração acelerado. Dentro da casa, Clara ouviu os passos cuidadosos e, por reflexo, se posicionou de forma defensiva atrás de um dos poucos móveis ainda em pé.
Quando a porta rangeu ao ser aberta, Vanessa entrou, seus olhos imediatamente encontrando os de Clara. Os segundos de silêncio que se seguiram foram carregados, cheios de histórias não ditas e desconfiança mútua. Seus passos eram hesitantes, e seus olhos evitavam os de Clara, como se o peso do passado estivesse entre elas. A tensão era palpável, uma barreira invisível, mas concreta. Vanessa era a mais nova do grupo, uma mulher de cabelos castanhos encaracolados que caíam em mechas rebeldes sobre os ombros. Sua pele, pálida demais para o seu bem devido ao tempo enclausurada nos corredores do subsolo, contrastava com seus olhos intensos, cuja profundidade nem Clara, nem Marcos conseguiam decifrar.
Clara não conseguia esquecer que Vanessa desempenhara um papel crucial em sua fuga — fora Vanessa quem destravou a porta final enquanto os alarmes soavam e os passos dos seguranças ecoavam pelo corredor. No entanto, a mesma mulher também havia sido parte de sua captura inicial, hesitando quando deveria tê-la ajudado.
Clara lembrou-se com nitidez do momento em que, machucada e encurralada, ouviu o sinal de que a porta estava aberta. Vanessa, com a voz trêmula pelo comunicador, dissera: “Corre. Isso é tudo que posso fazer.” Apesar do gesto, o ressentimento ainda oscilava em sua mente como uma balança instável entre gratidão e desconfiança.
Trecho do diário de Vanessa: “Não sei se Clara vai me perdoar, e talvez ela nem devesse. Mas sei que não posso continuar fugindo. Se estou aqui, é porque acredito que ainda há algo a ser salvo, não apenas em Clara ou em Marcos, mas em mim mesma.”
Marcos chegou por último, sua silhueta se destacando contra o brilho fraco do entardecer. Caminhou até a casa com passos firmes, mas internamente estava dividido entre a culpa que ainda carregava e a determinação recém encontrada. Sua mochila estava pesada, recheada de ferramentas improvisadas: cabos, dispositivos de bloqueio de sinal, esquemas desenhados à mão e uma lanterna de luz fraca. Ele a havia preenchido com tudo o que acreditava ser útil, um reflexo da obsessão com os planos que vinha traçando nos últimos dias.
Ao entrar na casa, o cheiro de poeira e mofo o envolveu, e o som de seus passos ecoou pelo piso de madeira rangente. Seu olhar encontrou o de Clara primeiro, uma troca silenciosa de entendimento, como se ambos reconhecessem o peso das responsabilidades que compartilhavam. Quando seus olhos se voltaram para Vanessa, havia um ceticismo claro misturado a uma pitada de esperança relutante, como quem quer acreditar, mas ainda teme confiar completamente.
O trio se reuniu na sala principal da casa, um espaço amplo, mas desolado, onde a luz das frestas projetava sombras inquietantes. Clara assumiu o controle da conversa, perguntando o que cada um sabia, o que tinham trazido, e o que estavam dispostos a fazer. Sua postura era a de uma líder nata, com palavras firmes e diretas que deixavam claro o que esperava de ambos.
Vanessa, embora quieta e observadora, interrompeu em momentos estratégicos, sugerindo ajustes e acrescentando insights baseados em sua experiência. Seus dedos, quase sempre apertando o caderno que carregava, indicavam uma inquietação constante, como se cada ideia precisasse ser capturada antes de escapar. Seu olhar não encontrava facilmente o de Clara ou Marcos, mas ela registrava tudo com precisão, em palavras e emoções contidas.
Trecho do diário de Vanessa: “Eles falam como se soubessem o que fazer. Mas eu me pergunto se algum de nós realmente sabe. Eu vejo o potencial em Clara e a organização de Marcos, mas também vejo como ambos se debatem com as próprias inseguranças. Talvez seja isso que faça de nós uma equipe: nós estamos tentando, apesar de tudo.”
Marcos, por sua vez, espalhou os papéis e esquemas que trouxera, explicando detalhadamente os pontos fracos das operações de Victor. Ele apresentou um plano preliminar: usar seu conhecimento das estruturas da Lancellotti Futures para identificar pontos fracos e sabotar operações menores. Sua voz carregava uma calma que contrastava com a energia contida em seus gestos enquanto manipulava os diagramas.
Trecho do diário de Marcos: “Clara fala com convicção, mas eu sei que ela carrega mais do que está disposta a mostrar. Vanessa é um enigma — quieta, mas claramente inteligente. Eu não confio nela ainda, mas também não posso ignorar o que traz para a mesa. Talvez isso funcione, ou talvez seja nossa própria ruína.”
Apesar da tensão inicial, o trio encontrou um ritmo de colaboração, onde a liderança estratégica de Clara, a visão detalhista de Marcos e a percepção analítica de Vanessa começaram a se complementar. O silêncio ocasional entre eles era preenchido pela expectativa, mas também por algo mais profundo: uma compreensão de que estavam dando os primeiros passos em algo que poderia mudar tudo.
Clara percebeu que a tensão no grupo não desapareceria tão cedo, mas também viu o potencial de cada um. “Se vamos fazer isso, precisamos de mais pessoas. Este é apenas o começo,” disse ela, olhando para os dois. “Victor não é invencível, mas precisamos ser mais inteligentes do que ele.”
Trecho do diário de Marcos: “Clara tem o que é necessário para liderar, mas liderar não é apenas apontar direções. Ela carrega um peso que é difícil de ignorar. Cabe a nós apoiá-la e garantir que não caia sob esse peso.”
II
A primeira missão do trio foi cuidadosamente planejada para expor uma fraqueza nas cadeias de transporte de Victor. Tudo começou com Clara organizando as informações disponíveis, traçando um mapa mental das rotas e dos possíveis elos mais frágeis. Ela guiou o grupo na escolha do alvo, analisando cenários e prevendo possíveis reações de Victor.
Marcos, com sua expertise técnica, assumiu a tarefa de desenvolver dispositivos improvisados que pudessem rastrear e interceptar comunicações entre os motoristas e a central de controle. Ele passou horas ajustando cada componente, sua mente funcionando como uma máquina de precisão. “Tudo tem que estar perfeito,” murmurava para si mesmo enquanto montava os equipamentos em sua bancada improvisada.
Vanessa, por sua vez, ativou sua antiga rede de contatos, estabelecendo pontos de observação estratégicos ao longo das rotas. Sua aparência discreta e habilidades de comunicação permitiram que ela obtivesse informações cruciais sobre horários e pontos de parada. Apesar de suas contribuições, ela evitava discussões diretas, observando atentamente Clara e Marcos interagirem, com um leve receio de ser totalmente aceita.
A operação foi executada durante a noite, com cada membro do trio assumindo um papel vital. Clara permaneceu no comando, observando o progresso a partir de um ponto de vigilância. Vanessa, com seu comportamento reservado, infiltrou-se nas proximidades do ponto de parada sem ser notada, transmitindo informações em tempo real. Marcos, em uma posição próxima ao alvo, usou seus dispositivos para desativar momentaneamente os sistemas de comunicação, criando o caos necessário para interceptar as informações.
Trecho do diário de Clara: “Naquela noite, percebi que Marcos e Vanessa eram mais do que aliados. Eles eram peças de um quebra-cabeça que nunca consegui completar sozinha. Cada movimento deles complementava minha visão. Mas havia dúvidas — principalmente em relação a Vanessa. Ainda não sei se posso confiar plenamente.”
Durante a operação, houve momentos de tensão. Um motorista percebeu algo estranho e quase alertou a central, mas Vanessa, usando sua presença de espírito, conseguiu distrair o homem por tempo suficiente para Marcos concluir sua parte. Clara, do alto de sua posição, manteve a calma, orientando ambos com instruções precisas.
Trecho do diário de Marcos: “Tudo parecia tão frágil naquela missão. Cada passo tinha que ser exato, cada segundo contava. Clara manteve o foco e Vanessa foi mais útil do que eu esperava. Ainda assim, algo nela me intriga — é como se ela estivesse aqui por algo além de Victor, algo que ainda não posso entender.”
Apesar dessas falhas iniciais, a operação foi um sucesso. O trio interceptou dados que revelavam como a rede de transporte de Victor era sustentada por uma infraestrutura vulnerável. Essas informações, cuidadosamente analisadas por Clara, deram ao grupo o impulso necessário para planejar futuras ações.
Para Vanessa, a vitória foi mais do que um golpe contra Victor; foi uma fagulha de esperança. Em seu caderno, ela começou a formular uma ideia que não ousava compartilhar: “E se a eternidade pudesse ser um bem coletivo? E se pudesse ser conquistada sem o sofrimento que Victor impõe?” Por enquanto, essas ideias ficariam apenas no papel, mas eram o início de algo maior.
Trecho do diário de Vanessa: “Clara e Marcos são determinados a destruir tudo que Victor criou, mas não consigo deixar de pensar: e se pudermos salvar algo disso? As pessoas sofreram demais, e eu vi isso de perto. Talvez a chave para um futuro melhor esteja nas cinzas do que ele fez.”