I
Há momentos em que a consciência se torna um peso insuportável. Para Clara Cardoso, esse peso crescia a cada dia, cada experimento, cada vida perdida. Seus questionamentos, antes apenas murmúrios na mente, agora ecoavam como gritos.
Clara nunca foi de confrontar diretamente. Era mais fácil observar, anotar, refletir em silêncio. Mas quando o que estava diante dela parecia ultrapassar todos os limites do aceitável, até mesmo seu silêncio se tornava insuportável.
Trecho do diário de Clara Cardoso: “Eu não sei mais como justificar o que estamos fazendo. Os voluntários entram cheios de esperança e saem — se saem — como sombras do que eram. Mutações, falência orgânica, dores que nenhuma palavra poderia descrever. E Victor? Ele observa tudo como se fosse apenas uma etapa necessária. Há dias em que eu não consigo dormir. Há noites em que eu não quero acordar.”
Seus relatórios também mostravam sinais de frustração. Clara tinha o papel de avaliar os impactos éticos da pesquisa, mas qualquer tentativa de apontar os perigos ou os erros era rapidamente ignorada por Victor. A pressão para apresentar resultados superava qualquer preocupação moral.
Relatório Interno de Clara Cardoso: “Teste 312: Sujeito mostrou sinais de hiper-regeneração descontrolada. Crescimento tumoral em órgãos internos. Paciente sucumbiu após 48 horas. Recomendação: Pausar experimentos humanos até que possamos entender melhor os mecanismos. Risco ético em nível inaceitável.”
Nota de Victor no Relatório: “Recomendação ignorada. Continuem.”
O que realmente atormentava Clara era o destino dos voluntários. Muitos eram pessoas vulneráveis, atraídas pela promessa de uma cura ou por pequenas recompensas financeiras. Clara sabia que essas pessoas não entendiam o verdadeiro risco que corriam. E ela sentia que fazia parte desse engano.
Trecho do diário de Clara Cardoso: “Hoje conheci Luciana, uma mãe solteira que aceitou participar dos testes para pagar o tratamento do filho. Ela sorria, dizia que era um risco calculado, que ‘Deus sabe o que faz’. Agora, ela está no leito 7, entubada, com os olhos cheios de medo. Eu fiz parte disso. Eu a convenci de que poderia dar certo.”
Foi nesse momento que Clara começou a planejar. Ela não podia simplesmente virar as costas e sair. Ninguém saía da Lancellotti Futures sem consequências. Mas Clara sabia que não poderia continuar compactuando com aquilo. Seus questionamentos se transformavam em planos, seus medos em uma determinação silenciosa. Ainda assim, havia uma dúvida que não a deixava: como enfrentar Victor Lancellotti, um homem que não apenas ignorava a moralidade, mas que parecia se alimentar dela?
Trecho do diário de Clara Cardoso: “Se eu não fizer nada, quem fará? Talvez eu não consiga impedir isso sozinha, mas preciso tentar. Alguém precisa dizer que chega. Alguém precisa ser a voz daqueles que foram silenciados.”
Clara sabia que o preço de sua decisão seria alto. Mas talvez, para ela, o preço do silêncio fosse ainda maior.
II
Os dias seguintes foram preenchidos com estratégias cuidadosas. Clara sabia que, para expor Victor, precisava de provas concretas. Relatórios já não bastavam; eles poderiam ser facilmente descartados como anotações interpretativas. Ela começou a documentar tudo com detalhes meticulosos: gravações de reuniões, imagens das condições dos voluntários, dados que mostravam claramente os riscos negligenciados.
Seus passos eram meticulosamente calculados. Clara entendia que qualquer erro poderia custar sua própria vida. Ela evitava chamar atenção, agindo com a mesma discrição que a tornara invisível para Victor durante tanto tempo.
Gravação confidencial: Victor: “Estão preocupados com os números? Vejam isso como um investimento a longo prazo. A mortalidade desses testes é irrelevante diante do que estamos prestes a alcançar.” Clara (em pensamento): “Irrelevante… Essas pessoas são irrelevantes para ele. Mas não para mim.”
Clara também começou a construir uma rede silenciosa de apoio. Um técnico do laboratório que compartilhava suas dúvidas. Uma enfermeira que não conseguia mais assistir aos horrores calada. Pequenas alianças formadas com cuidado, baseadas na confiança e na certeza de que Victor não podia saber. Essa rede não era grande, mas era o suficiente para começar algo maior.
Trecho do diário de Clara Cardoso: “Hoje, conversei com Marcos, o técnico de laboratório. Ele hesitou, mas concordou em me ajudar. Disse que não sabe como poderemos parar Victor, mas que já não consegue olhar para o que está acontecendo e fingir que está tudo bem. Não estamos sozinhos. Isso me dá esperança, mas também me lembra do perigo que enfrentamos.”
III
Clara e sua pequena rede decidiram que precisavam de algo que fosse impossível de ignorar. A ideia era simples na teoria, mas complexa na execução: reunir evidências irrefutáveis que provassem não apenas a negligência de Victor, mas também os crimes éticos que ele havia cometido. Isso significava acessar os arquivos mais protegidos da Lancellotti Futures.
Reunião confidencial do grupo: Marcos: “Os servidores principais estão no nível mais baixo do subsolo, segurança máxima. Precisamos de alguém para desviar as câmeras enquanto outro copia os arquivos.” Clara: “Eu posso acessar os laboratórios e levar as chaves digitais. Mas precisamos de tempo. Qualquer deslize e Victor saberá.”
O plano dependia de sincronização. Marcos assumiria a tarefa de monitorar as câmeras, criando falhas temporárias nos sistemas de segurança. Clara entraria nos laboratórios com um dispositivo oculto para copiar os dados críticos. A enfermeira, Vanessa, ficaria responsável por vigiar os corredores e avisar caso algo fugisse do controle.
Quando o dia chegou, o nervosismo era palpável. Clara entrou no laboratório como fazia todos os dias, atravessando o caminho familiar que ainda conseguia arrepiar sua pele. Primeiro, descia pelos elevadores de alta velocidade que conectavam o luxo do andar principal ao subsolo frio e sem vida. As portas do elevador se abriam para um corredor iluminado por luzes fluorescentes, cuja tonalidade branca e estéril parecia roubar qualquer calor humano. As paredes cinzentas, revestidas com metal industrial, refletiam o som dos passos de Clara, amplificando a tensão.
Atravessar esses corredores era como entrar em outro mundo. Embora os laboratórios fossem equipados com máquinas de última geração e uma tecnologia que beirava o futurístico, o ambiente exalava frieza. As portas automáticas se fechavam com um chiado suave, isolando cada sala como cápsulas de segredos inconfessáveis. Ao longo do caminho, Clara via as jaulas alinhadas com os animais de teste, que a observavam em silêncio com olhares que a seguiam, cheios de uma compreensão quase humana.
Mais adiante, surgiam leitos ocupados por pessoas — os “voluntários” — presos em um estado de semiconsciência. Muitos dormiam devido aos sedativos administrados, mas outros estavam acordados, observando o teto com olhares vazios ou murmurando palavras desconexas. Era uma visão perturbadora: fileiras de corpos que pareciam menos humanos e mais experimentos em espera, conectados a máquinas que monitoravam cada detalhe de seus sinais vitais. Para Clara, o ambiente era um lembrete constante de que, ali, até mesmo a humanidade era uma moeda de troca para o progresso.
Quando finalmente chegou ao laboratório, encontrou o espaço impecavelmente organizado, mas ainda assim desprovido de vida. As superfícies brilhavam sob a luz artificial, os equipamentos estavam dispostos com precisão cirúrgica, e cada detalhe parecia gritar eficácia, não empatia. Clara ajustou o jaleco enquanto se dirigia à sua estação de trabalho, tentando esconder o dispositivo no bolso e manter a aparência de normalidade.
Marcos se posicionou na sala de manutenção, os olhos grudados nas telas de vigilância, enquanto começava a desativar temporariamente as câmeras nos corredores estratégicos. Clara, ao perceber que Marcos estava pronto, ajustou seu jaleco e deixou sua estação de trabalho, caminhando com passos firmes em direção ao último andar do subsolo, onde os servidores principais estavam localizados.
O caminho era longo e cada passo parecia mais pesado do que o anterior. Clara ouvia sua respiração, o som abafado de seus próprios passos e o zumbido constante das máquinas ao redor. “Tudo sob controle?” ela murmurou no rádio, tentando disfarçar a tensão em sua voz.
Marcos: “As câmeras estão desativadas nos próximos dois corredores. Você tem uma janela de cinco minutos, Clara.”
Vanessa: “Movimento estável por aqui. Só alguns técnicos na ala norte. Ainda seguro.”
Cada atualização a fazia avançar, mas o ambiente parecia conspirar contra sua determinação. Os leitos com voluntários agora pareciam ainda mais opressivos; alguns gemiam baixo, enquanto outros permaneciam em silêncio absoluto, conectados a tubos e monitores que apitavam com frequência. Clara desviava o olhar, mas sabia que aqueles rostos jamais sairiam de sua memória.
Ela apertava o pequeno dispositivo escondido no bolso, tentando controlar o tremor em suas mãos. “Se algo der errado, vocês têm que sair sem mim,” disse, quase sussurrando.
Vanessa: “Não diga isso. Vamos todos sair daqui. Agora mantenha o foco.”
Os corredores se tornavam mais estreitos quanto mais ela avançava, as luzes piscando levemente, como se o prédio estivesse ciente do que estava acontecendo. Clara se aproximava do laboratório de dados, sentindo o peso de cada segundo que passava. No rádio, a voz de Marcos interrompeu seus pensamentos:
Marcos: “Clara, cuidado. Tenho movimento no corredor oposto. Vou desviar a câmera, mas acelere.”
Ela assentiu, mesmo sabendo que ninguém poderia vê-la, e apressou o passo, sentindo a tensão crescer em cada fibra de seu corpo. As portas automáticas à sua frente se abriram com um chiado, revelando o corredor que levava ao coração do subsolo: os servidores principais. Grandes torres de metal frio se erguiam por todo o espaço, conectadas por uma intrincada rede de fiações impecavelmente organizadas. Luzes piscavam incessantemente, criando a ilusão de uma cidade futurista em miniatura.
O zumbido constante das máquinas preenchia o ambiente, um lembrete de que cada torre abrigava informações capazes de mudar destinos. Clara parou por um momento, encarando o cenário com um misto de fascinação e medo, antes de avançar. Tudo parecia em câmera lenta, e Clara sabia que o momento da verdade estava cada vez mais próximo.
Trecho do diário de Clara Cardoso: “Minhas mãos tremiam tanto que eu mal conseguia encaixar o dispositivo na porta do servidor. Tudo em mim dizia para sair correndo, mas não podia. Não agora. Não depois de tudo.”
Por um momento, parecia que o plano funcionaria. Clara conseguiu acessar os arquivos e começou a copiar os dados. Mas então, um alarme soou. Algo deu errado. Marcos gritou pelo rádio:
Marcos: “Clara, alguém está vindo para o laboratório! Você precisa sair agora!”
Clara tentou manter a calma enquanto removia o dispositivo e escondia as evidências. Mas os passos nos corredores se aproximavam rapidamente. Quando a porta se abriu, ela segurou o fôlego, pronta para ser confrontada por um dos seguranças de Victor. Para sua surpresa, era Vanessa, a enfermeira que havia se afastado do plano no último minuto.
Vanessa parou ao vê-la, hesitando por um momento. Seus olhos estavam arregalados, e ela segurava um crachá falso em uma das mãos. “Clara,” sussurrou, a voz trêmula. “Eu… eu não consegui ficar fora disso. Não consegui ignorar.”
Clara sentiu um misto de alívio e urgência. “Então ajude-me a terminar isso,” respondeu em um tom baixo, entregando a Vanessa uma parte do dispositivo enquanto tentava retomar o foco no que restava do plano. O som dos alarmes ao fundo parecia mais distante agora, mas o tempo continuava correndo contra elas.